Archive for the ‘André’ Category

Aula de Português

por André

O poema era Aula de Português, de Carlos Drummond de Andrade, e após a leitura do texto, perguntei ansioso aos meus alunos se eles haviam gostado. As respostas foram quase unânimes: o poema era chato, ruim e difícil de compreender. Pacientemente, expliquei que a beleza ou a qualidade de uma obra de arte não depende necessariamente do nosso gosto pessoal e que muitas vezes não gostávamos das coisas simplesmente por não compreendê-las. Foi então que comecei a analisá-lo estrofe por estrofe, verso por verso, palavra por palavra. Após exaustivas explicações e acompanhar o olhar surpreso de alguns ao desnudar o texto, mostro que o poema nem era tão difícil assim. Eles concordam, mas um aluno, do alto da sua sinceridade, solta do fundo da sala:

– Professor, mas ele continua chato.

O Português, como disse Drummond, são dois; o dos meus alunos por muitas vezes é mistério.

Crônica de um João

por André

João é nome comum. Talvez porque seja fácil de pronunciar. João. J – o – ã – o. Quatro letras, uma consoante e três vogais. João é nome próprio de quem faz sucesso, há uma incontável lista de homens brilhantes que portam esse mesmo baluarte. O discípulo mais amado, foi nome de presidente também, de escritor famoso. João é nome de anônimo, joão é nome de uma multidão sem rosto. Garrincha costumava chamar os seus desafortunados marcadores de João. Pobres joões!

João é um nome tão importante e ao mesmo tempo tão popular que encabeça algumas expressões pejorativas bastante correntes no português. Dar uma de joão-sem-braço é arrumar uma desculpa esfarrapada pra qualquer situação onde lhe é cobrado um compromisso. Já ser um joão-ninguém é não gozar de qualquer importância perante a sociedade. Ou seja, do universo de mais de 390 mil palavras de que dispomos no português brasileiro, arrisco a dizer que não haja palavra mais importante.

João pode ser uma criança também. E se for criança, encerra todas as contradições listadas acima e mais um caminhão de outras. O celebrado João, hoje, no seu dia, é a criança mais amada dentre uma multidão de joões. Grande João, que mesmo tão pequeno, ocupa uma família inteira atrás das suas artimanhas pra nos final das contas arrumar uma desculpa esfarrapada com seu sorriso de menino travesso. Mas se eras tão ninguém, João, por que cativas todo mundo?

Caminhada

por André

A mão pousada sobre a nuca enquanto andávamos pela rua era uma forma de demonstrar carinho. A mão e a nuca são duas partes do corpo anatomicamente projetadas para dar certo. Dentre outros pares, se pudéssemos extrair um casal para o corpo do homem e da mulher, estariam lá, entrelaçadas, mão e nuca, como as pernas que se aninham na cama nos dias frios de inverno. Quando mãos e dedos se armam em forma de concha, são eles que tomam a iniciativa de puxar e aproximar as bocas – os olhos também são cúmplices, falemos a verdade -, ou de dar um carinho sutil ou ainda de guiar a passos firmes numa caminhada incerta pela cidade.

Assim como castigava, o veranico de maio me brindava com o seu colo caprichosamente coberto por finas alças de uma blusinha preta de algodão. Uma leve marca de biquíni, que lembro bem você não gostava, dividia espaço com as contáveis sardinhas do seu ombro. Onde estávamos? Era o cruzamento da Avenida Presidente Vargas com a Avenida Rio Branco ou das incontáveis vezes que nossos olhos se encontravam? Como crianças que se encantam com um primeiro olhar, descobríamos juntos cada canto da cidade esquecido no dia a dia. Éramos dois, mão e nuca, a vagar entre pernas e braços que se confundiam na tropelia da cidade.

Uma tarde inteira não era suficiente, talvez tampouco uma vida. A verdade é que o tempo e a distância são relativos só quando querem. Explico. Uma tarde quente em uma sala de aula é eterna, o tempo de um beijo numa esquina movimentada também. Ouso dizer que o beijo, ainda que leve poucos segundos, é menos suscetível à brevidade do tempo, pois estará comigo para sempre na memória. E as mãos, que outrora se refugiavam no pescoço, tomaram costas e cintura para, por fim, segurar a cabeça e despedir com um beijo carinhoso na testa. Mesmo que não haja dia seguinte, talvez reste a ansiedade por um reencontro. Estaremos aqui: firmes e obedientes como um folião que espera pelo carnaval para atropelar as tristezas acumuladas no ano.

Crônica das coisas pequenas

por André

Eis uma crônica que quero escrever há bastante tempo, mas a força do comodismo e da falta daquilo que chamo de inspiração sempre me obrigam a adiá-la. Como me sinto no compromisso de encerrar um ciclo – ainda que ele nem tenha existido –, povoo o papel com palavras na esperança que um outro se inicie.

A gente demora muito tempo pra perceber daquilo que a gente gosta. Poderá haver quem leia isso e pense imediatamente numa morena de corpo escultural, cabelos caindo pelo rosto e desenhando uma beleza impecável. Certamente alguém se lembrará da conta bancária apta a realizar qualquer travessura que uma infância pobre tenha lhe negado, talvez da sua casa de praia em Angra dos Reis comprada com o fundo de garantia após 35 anos de serviços prestados ou daqueles momentos que passou ao lado da família num final de semana com feriado prologando. Me vem à memória, assim como me parece intrigante e emblemática, a teoria de que o homem possui duas almas, como Machado de Assis escrevera brilhantemente em O Espelho.

Digo isso porque só agora consigo ter consciência de que a minha alma hoje está nas coisas pequenas. A minha verdadeira paixão não estava naquele vídeo-game que ganhei de Natal aos 12 anos e fez meu pai se encalacrar em prestações, tampouco naquele amor que me deu um último beijo num sábado à noite em um ponto de táxi da Carioca. O amor de hoje é pequeno, não é arrebatador, mas é perene. E isso descobri depois de ficar 24 horas sem experimentar o que ele, sem perceber, me proporciona.

Meu amor hoje é acordar com um grito agudo às 8h da manhã fazendo bagunça pelo corredor.

Meu amor hoje é deixar de assistir ao programa esportivo favorito no dia seguinte à vitória emblemática do seu time para ver um desenho que, chato, passa pelo menos quatro vezes ao dia.

Meu amor hoje é não comer o último pedaço de bolo – meu por direito, já que sou o caçula –, em troca de um beijo interesseiro.

Meu amor hoje é viajar, ficar uns dias foras, mas não aguentar de saudade e ansiedade pra ver uma boca que se abre sem dente para sorrir de felicidade quando te vê.

Meu amor hoje é descobrir depois de 25 anos que o sapo sentindo frio na beira do rio, de camisa verde e só de cueca era eu.

Meu amor hoje nunca esteve tão firme e seguro, mesmo caminhando com passos incertos e ainda desajeitados.

Meu amor hoje atende pelo nome de Maria Clara.

A crônica da mulher bonita

por André

Era uma interrogação em aproximadamente 1,65 de altura. Não que fosse uma dessas mulheres cheias de dúvidas para escolher com que roupa iria a um simples compromisso, mas sim porque homem algum foi capaz de descobrir o que se passava pela sua cabeça ou decifrar qualquer sentimento que a leve expressão facial tentava denunciar à medida que brincava com um copo de suco e olhava debochadamente nos olhos dos presentes.

Era decidida, ao menos. Com um vestido preto e simples – o que talvez denotasse pouca paciência para a escolha da roupa –, chamou a atenção de qualquer um que não estivesse bêbado quando entrou na escondida confeitaria do bairro e sentou-se no terceiro banco à esquerda da máquina registradora.

– Um suco de morango, por favor.

Imaginei que fosse cliente antiga, já que não perguntou ao balconista quais as opções do estabelecimento. Enquanto esperava, roía cuidadosamente o canto da unha para não borrar o batom num tom de rosa bem leve que combinava com a sombra dos olhos. Não se importava com nada. Pouco dava atenção aos olhares ou cochichos dos outros à sua volta, parecia não haver ninguém ali. Era a garota e o seu suco de morango.

Abriu a bolsa, pegou o celular, conferiu uma mensagem e logo em seguida começou a falar com alguém do outro lado da linha. A cada sorriso rouco provocado pela conversa, puxava o canudo já manchado pelo rosa do batom para beber mais um gole do suco ou se punha a enrolar a ponta dos ondulados cabelos castanhos claros que caíam nos ombros marcados pelas sardas que a alça fina do vestido tentava esconder.

Eu a observava fixamente. Cada movimento, cada sílaba pronunciada, cada balançar de cabelo. Pagou a conta e saiu. Deu um pequeno trote segurando o vestido que até o vento tentava levantar e sumiu do meu campo de visão enquanto atravessava a via.

Discretamente levantei e fui até a calçada ver que direção tomara. Tudo em vão. Àquela altura e num piscar de olhos se confundiu com a beleza das ruas de Ipanema.

Uma noite idílica

por André

Abro os olhos bem devagar e esfrego-os com as mãos para desembaçar a visão ainda confusa pela claridade de algum rastro de luz que entra pela janela. Janela fechada e marcada por gotas de chuva que o vento trouxera e caprichosamente pintou no vidro. Fecho os olhos novamente e estico os braços para me espreguiçar. Estico os braços como quem, numa tentativa insana, tenta desesperadamente prolongar o momento.

Abandono a moldura e me viro pra você deitada no sofá. Com um vestido preto que deixava o colo alvo descoberto, segurava uma taça de vinho entre os dedos, como se posasse para um pintor anônimo diante do monumento que lhe renderia a fama eterna por sua obra-prima.

Caminhei pelo chão de madeira até o canto da sala sem falar nada. Só te olhava e prestava atenção em cada detalhe daquela cena para emoldurá-la na memória de forma que o tempo não fosse capaz de esvaí-la em fumaça. Ligo o rádio em busca de alguma estação que fizesse jus ao momento, à espera de uma música que transformasse aquela situação em cena de filme.

Sento aos pés do sofá sem dizer uma palavra sequer. Sento fitando seu rosto e o seu corpo relaxado no sofá. Sento e te admiro até você ficar sem graça, esboçando um leve rubor no rosto, como se não estivesse acostumada a ser observada assim insistentemente. Poderia passar a noite inteira ali em transe, feito a fotografia que vi recentemente de um monge que, em protesto, ateou fogo ao próprio corpo e aguentou passivamente a profusão das chamas que insistiam em atrapalhar a sua concentração. Mas fui interrompido.

Fui interrompido pelos primeiros solos e acordes de um piano que tocava no rádio a minha música favorita. Aliás, não sei nem se aquela é a minha música favorita. Mas para o momento era. Levantei, peguei a taça de sua mão e coloquei na mesa. Fiz um gesto com a mão e te puxei para dançar. Sem graça e talvez sem compreender, você acatou meu pedido gestual e passamos a flutuar sobre o piso de madeira. Unidos, passei a sentir as curvas do seu corpo que até então só me era permitido contemplar. Sentir as curvas e o perfume que vinha do seu cabelo úmido. Eu não sabia dançar. Só queria viver um momento único, uma cena idílica. Fecho os olhos para suspirar profundamente, encosto a cabeça no seu ombro e beijo o seu pescoço. A música acaba e ficamos ali, inertes no meio da sala por um tempo incontável. Eu poderia dormir e nunca mais acordar.

Ao abrir os olhos, tenho a visão novamente tomada pela claridade. Esfrego-os com força e olho ao redor. Só vejo o vazio do meu quarto e o vidro da janela que aprisionava o Sol e deixava transpassar a dura realidade de ter acordado de um belo sonho.

A mulher com o cabelo mais bonito do mundo

por André

Não importa quantos anos passem, aquela cena continuará nítida na memória. Como se, a ferro e fogo, imprimissem uma marca na mente incapaz de ser apagada e tampouco esquecida. Eu não sei quem era aquela mulher, seu nome, idade ou de onde era. Mas aquele encontro ficaria marcado e por muito tempo a expectativa de revê-la me acompanhou.

Era tarde de maio e eu estava na livraria que costumo frequentar. Como de hábito, folheava as novidades literárias espalhadas pelos corredores e seções que o espaço apertado dela me oferecia. Sempre gostei da calma do local e me permitia perder horas ali, que me servia como uma espécie de refúgio de toda correria que a cidade impõe.

Naquele dia chovia torrencialmente e os passantes buscavam um lugar para se abrigar da tempestade. Acostumado à presença silenciosa dos livros, me senti incomodado com o burburinho das pessoas atrapalhando a minha atenta tentativa de leitura. Profanavam meu templo e o meu ritual semanal. Para fugir das pessoas que falavam insistentemente, procurei as fileiras mais afastadas da porta até achar alguma coisa que realmente prendesse minha atenção.

Folheava um livro qualquer até ouvir o irritante barulho do que parecia ser um salto martelando o piso de madeira. Fixei os olhos nas páginas sem ler nada. Apenas queria escapar daquele ambiente caótico que se formara por conta da chuva. Senti que a mulher parou ao meu lado, mas não fiz questão de olhar. Resolvi, então, colocar o livro na prateleira e sair dali.

Ao virar o corpo para me dirigir até o corredor seguinte, me deparei com a mulher que ficaria marcada na minha memória até hoje. A mulher com o cabelo mais bonito do mundo. Não me recordo quanto tempo fiquei parado admirando aquelas melenas castanhas. Cinco, seis, dez minutos? Não saberia dizer, mas acabei me dando conta da situação e fui para outra prateleira observá-la sem que pudesse ser notado.

Meu olhar atônito acompanhava atento cada movimento que os fios faziam em cada movimento dela na sua procura por livros nas prateleiras mais altas. Eu fui testemunha ocular da mulher que levava a poesia cativa nos cabelos. E a partir daquele momento e daquele dia, levaria minha atenção, minha razão e durante um bom tempo meus pensamentos. Diante de tal situação, o que fazer? Eu não sabia, mas olhar já não me bastava mais. Eu queria sentir, cheirar, tocar…

Resolvi dar a volta e chegar mais perto para, quem sabe, sentir o cheiro ou esbarrar nela. Os corredores são apertados, eu teria uma desculpa. Eu era um alucinado e mendigava qualquer migalha que a circunstância pudesse me oferecer.

Não consegui. Ao me aproximar, por capricho do destino ou maldade dela, a vi colocar o livro cuidadosamente na prateleira e se dirigir para a saída. Fiquei sem reação. Não era possível que aquela seria a última vez. Poderia ter saído da livraria e ido atrás dela, mas a sua partida me deixou tão sem reação como quando a avistei.

Fui até onde ela estava e busquei o livro que lia. Peguei-o e passei página por página, tateava folha por folha e era como se tocasse aqueles cabelos. Aproximei as páginas do nariz e procurei sentir o seu cheiro. Hoje até acho que o que sentia era o cheiro de novo do livro, mas na época e até hoje consigo recobrar, sentia perfeitamente aquele perfume. O cabelo mais cheiroso do mundo.

Eu precisava guardar aquela prova, aquele documento. Me dirigi rapidamente até o balcão e resolvi comprá-lo. Aquela relíquia seria minha. Atordoado corri para casa com o livro nas mãos protegendo-o da chuva que já deixara de cair com violência. Sentado na cama, era um lunático. Cheirava-o insistemente procurando sentir naquelas páginas algo que me recobrasse aquela sensação única que vivi naquela tarde. Não me importava de quem era o livro ou o que nele continha. Importava era a sensação que ele me despertava.

Passei o resto da tarde e boa parte da noite naquele ritual até pegar no sono. Na manhã seguinte repeti tudo novamente até resolver ir para livraria à tarde tentar reencontrá-la. O local me despertava lembranças e os livros eram testemunhas que gritavam a minha angústia. Passei muito tempo repetindo essa rotina em vão. Foi então que percebi que aquilo fora obra do acaso e que me restava apenas me conformar.

Aquela mulher levaria não mais apenas a poesia cativa nos cabelos como eu já intuíra. A partir de então levaria também o meu lembrar…

Um brinde

por André Cruz

Eu queria escrever algo leve sobre um assunto profundo. Algo que tratasse com agudeza essas superficialidades da vida.

Não consigo. Nada mais tem importância pra mim. Aliás, a única coisa que me importa é esse lastro de olho diesel que você deixou nas minhas veias. É o tormento da sua volta que faz meu coração palpitar.

Acordo afobado todos os dias. Acordo, pego o celular e em vão procuro uma ligação sua.

Já pensei em trocar de número infinitas vezes para esse tormento passar, mas não consigo. Desisto por falta de coragem, por medo de perder uma desesperada tentativa de reconciliação sua pedindo desculpas pelo tempo perdido ou uma daquelas mensagens apaixonadas que trocávamos.

Tudo mentira. Aposto que você diz isso pro primeiro cara que te paga uma bebida na rua e te leva pra cama.

É como se eu esperasse uma Parusia. Virei um crente maldito. Te defendo fanaticamente perto dos que ousam falar de você.

– Ela te deixou! Não merece o seu sofrimento!

Foda-se! Só estou carregando a minha cruz.

Há poucos dias foi o nosso aniversário de namoro. Peguei aquela foto que tiramos juntos numa Polaroid em um dos nossos primeiros encontros. A foto já estava perdendo a cor e a nitidez. Já o que eu sentia…

Tormenta! E a minha nau já não tinha mais comandante e nem rumo.

Tomei um banho, me arrumei e saí. Fui naquele restaurante em que a gente se conheceu. Sentei à mesma mesa e pedi ao garçom o nosso mesmo prato.

– E pra beber, senhor?
– Uísque.

Um brinde a sua covardia!

Sete anos!

Levei esse tempo todo pra descobrir que você não prestava, que era uma merda na cama e que só me fez mal.

Sete anos pra descobrir que eu te amo, que nenhuma mulher vai te substituir e que você merece toda filha da putagem do mundo até voltar pra mim.

Carta de(s)amor

por André Cruz

Você se foi há muito tempo. Desde então eu fico aqui, te esperando sentado no mesmo lugar da última vez que nos vimos. Sete anos, sete anos de vida jogados fora. Talvez fosse melhor termos terminado tudo ou até mesmo eu ter descoberto alguma traição. Assim não ficaria com essa sensação de incompletude, esperando um fim que não vai acontecer. Não chove e nem faz Sol. O dia é cinza, amargo, abafado, incômodo.

Quando você partiu sem dar notícias, eu ainda te procurei por muito tempo nas esquinas. Procurava o teu olhar perdido em algum vislumbre. Em meio a tanta confusão da cidade, via o teu vestido sacodido pelo vento, seguia seu cheiro e voltava pro mesmo lugar. Pra sarjeta. Sentado respirando a fumaça dos carros que passavam jogando a água da poça no meu rosto.

Como pode fazer isso?

Acho até que o cheiro que sentia era o teu cheiro podre que vinha do bueiro. Virei parte do cenário cinza da cidade. Um poste, uma lata de lixo, um papelzinho de propaganda no chão sujo da rua.

Antes eu só te amava. Agora eu também te odeio.

Já quis até que você morresse, mas seria pouco! Você precisa sofrer. Como eu, perder sete anos da sua vida. Sofrendo, quem sabe até você fique no mesmo lugar que eu estou hoje. Quem sabe assim até nos encontremos na mesma vala.

Quem sabe assim você até leia esse desabafo de(s)amor.

“Adeus, minha ilusão de um instante! Tudo continua a ser velho; nihil sub sole novum.”

Dia de consulta

por André Cruz

Hoje acordei cedo. Era dia de consulta no pediatra. Não que eu esteja em idade para tal ou precisando de médico, mas prometi a mim mesmo que acompanharia minha sobrinha ao médico e assim poderia rever o senhor que cuidou da minha saúde durante 15 longos anos.

Confesso que fiquei ansioso. Na espera de ver a reação dele ao me reencontrar. Será que me reconheceria?

A sala de espera de uma clínica de pediatria é um show a parte. Pude me ver em todas as crianças que ali estavam aguardando a sua vez.

Desde as mais pequenas até as maiores.

Do consultório, vinha um choro estrondoso. É impressionante como esse choro é imponente. Capaz de aterrorizar todas as pequenas que estão do outro lado da porta aguardando a sua vez. Qualquer sinal de bagunça é interrompido e o melhor lugar para se proteger são os braços da mãe.

“Que monstro existe lá dentro?”, talvez se perguntassem.

A verdade é que eles ouviam aquilo e choravam calados por dentro. Choravam pelos olhos, mas sem derramar lágrimas. Como eu muitas vezes fiz e ainda faço.

Passei, então, a reparar nos quadros que enfeitavam as paredes. Todos eles se mantinham intactos. Fotos de crianças, de personagens do Sítio, enfim. Fiz um passeio pelos meus 7 anos, quando ia todas as quartas para tomar vacina antialérgica.

Maria Clara, chamou o doutor.

E lá fui eu.

A consulta nem era mais dela, era minha.

Surpresa minha, mas o senhor José me reconheceu.

– Não mudou nada. Tirando a barba, ainda tem o mesmo rosto.

Bondade a dele, que, pra ser sincero, nem reconheci direito.

Conversamos durante bons quinze minutos. Findo o bate-papo e a consulta, me despedi do doutor. Esperei pelo pirulito caramelado do Zorro que sempre ganhei quando terminava uma, mas já era tarde.

Já cresci e o choro desconhecido não me assusta mais. Menos ainda o medo de uma vacina. Meus problemas agora são outros e o pediatra não pode me consultar e menos ainda resolver. Infelizmente

Papo de mulher

por André

Como de costume em todas as terças, subi a Barão da Torre em direção à Vinícius de Moraes para beber no bar da esquina. Era como um ritual anti-stress no meio da semana após um cansativo dia de trabalho.

Chegando lá, Elírio já estava numa mesa bem no centro. O lugar não estava cheio. Eram oito horas da noite e apenas alguns casais e amigos se escondiam atrás das tulipas de chopp.

– Fala, meu jovem. – Me cumprimentou Elírio ainda com a barba suja de espuma da cerveja.

Ele era aproximadamente 15 anos mais velho que eu. Solteiro convicto. Segundo o mesmo, enquanto eu desmamava e começava a vestir cuecas, ele já desfraldava as calcinhas das donzelas. Eu só ria e concordava, afinal era verdade.

Conversávamos, como habitualmente, sobre futebol. Até que uma mulher no canto do bar, perto da máquina de música, me chamou a atenção. Era bonita e usava uma saia que não sei descrever bem. Tinha a cintura alta e subia dois palmos do joelho. Dançava e me pareceu vulgar.

– Olha que safada, Elírio. – Disse esperando a concordância do amigo.
– Onde?
– Ali, cara. Tá cego?
– Puta por quê, garoto?.
– Olha as roupas dela, cara. Olha como dança.

– Garoto, já disse Hamlet: Há mais putas travestidas de meninas santas do que supõe imaginar a nossa vã filosofia. – Concluiu gargalhando.

Elírio se levantou, foi até o balcão e acendeu mais um cigarro. Era fumante ocasional. Quando voltou, disse:

– Não é isso que vai fazer dela vadia, meu jovem. Aquela deve ser uma mulher resolvida. Fica e dá para quem quiser. Com ela não tem historinha. O mal das mulheres modernas é justamente fazer o que os homens fazem e cobrar da gente um comportamento que elas mesmas não têm. Aquilo é um homem de saia, portanto honesta.

Diante disso só consegui rir, mas sem concordar. Elírio e suas catastróficas filosofias. Dei uma olhada randômica no ambiente e vi um casal sorrindo. A moça era linda. Parecia também ter saído do expediente e trajava uma roupa social.

– Olha que gata. Perfeitinha. – Disse.
– Tá maluco, cara? Uma puta! Não sabe que é? É a Lurdinha.
– Hum… é mesmo. Já está saindo com outro.

Lurdinha era uma vizinha de prédio e há menos de duas semanas estava toda chorosa porque terminara com o noivo, que foi estudar na França. Bola fora!

– Como tu vai confiar numa mulher daquelas, garoto? Ela mesma me disse que ia sentir muita falta do noivo, que não vivia sem ele e todas aquelas histórias que as mulheres contam para posar de vítimas. Vida que segue? Claro, mas o luto dela durou pouco.

Agora me responda: quem é mais puta? Lurdinha ou a loirinha que está dançando? A outra, pelo menos, não engana ninguém.

– Olha aquele cara ali no balcão. Que música ele te lembra?

No balcão do bar havia um cara de meia idade. Com o olhar vagante, levava o cigarro até a boca, tragava e logo em seguida dava uma golada no copo de uísque. Parecia perdido.

Por trás de um homem triste há sempre uma…

– Perfeito! Chico Buarque. Ainda foi melhor que eu, garoto. Eu havia pensado em Black. Esse cara é a personificação da música do Pearl Jam. Enfim, um babaca. – Me interrompeu enquanto cantava.

– Ele está guardando o luto que a Lurdinha não guardou. – Eu disse.
– Aprende rápido, garoto!
– O papo está bom, Elírio, mas eu preciso partir.
– Beleza, meu bom. Até terça que vem.

Peguei minha carteira, deixei alguns trocados e me despedi. Já passava das onze horas e quarta-feira é dia de luta.
Assim que saí do bar meu telefone tocou. Olhei para o nome. Era minha noiva. Guardei o telefone no bolso e não atendi. Hoje não, melhor dormir para não pensar.

Segundo tempo

por André

Lembro-me como se fosse hoje. Era uma quarta-feira, uma quarta-feira especial.

O Flamengo, time do coração, tinha uma partida decisiva pela Copa Libertadores e eu não perderia aquele jogo por nada.

À época havia conhecido uma mulher e ela me convidara para sair justamente naquele dia. Já havíamos saído outras vezes, mas ela insistiu em me rever na decisiva quarta-feira.

Passei o final de semana inteiro pensando em desculpas a dar, mas nenhuma seria suficiente. Nenhuma seria plausível.

Chega a quarta-feira e acuado, me encontro com a coitada. Minha cabeça estava em um só lugar, no jogo.

O time estava bem e eu estava animado praquele jogo.

Amigos e futebol primeiro. Mulheres depois!

Já agoniado com a situação, inventei uma desculpa e logo fui embora pra casa. Correndo. Perder mais um segundo seria perder o jogo inteiro.

Naturalmente e sem esforço, o Flamengo ganhou, mas eu perdi. Ela nunca mais me ligou. Pudera, são escolhas que a gente faz. Eu aceitei a condição e paguei o preço.

Hoje, uma quarta-feira também especial, o Flamengo tem outro jogo decisivo pela Copa Libertadores.

O filme da minha vida parece ter retornado, mas de um modo diferente.

O time nem anda tão bem e não tenho mulheres para dispensar de um casual encontro.

O jogo virou.

Segundo tempo.

E o placar?

Espero o apito final!

Intervalo

por André

Os dicionários definem por intervalo um espaço de tempo entre dois momentos, duas épocas ou uma interrupção passageira.

Que eles estejam certos!

A semana começou como qualquer outra: chata.

Começou corrida, sem vontade de começar. Paradoxalmente preguiçosa.

Apesar de a segunda e a terça serem carrancudas, ao longe podíamos ver a iminência de um grande bem. Um feriado. Pausa pra ser feliz, em meio a tantas tristezas.

A quarta começou linda. Não podia ser diferente! Feriado. Sol a pino, praia, cerveja, churrasco e futebol. Alegria!

Nem tudo é perfeito. A quarta foi curta e logo vinha a quinta. Dia de trabalho.

O dia começou chato. Com o gosto amargo da ressaca na boca. Começou cedo e cinza. O céu chorava gotinhas de tristeza. Correria novamente. Infeliz. Se o dia começou cinza, a noite teve algumas fagulhas de luz no céu. Por mais negra que fosse a noite e por mais que as nuvens tentassem encobrir, as estrelas mostravam que ainda há alguma esperança. A esperança de um dia melhor.

E chega a sexta. Feriado. Dia de ser feliz. Dia de namorar. Dia de sair.

Dia de viver. De sexta a domingo será eterno.

Semana boa é semana com feriado.

Outro assim só em outubro. 6 meses! Demorarão 1 ano!

Enquanto isso, nesse intervalo, a gente vai levando… brincando e se enganando de ser feliz.

João e Maria

por André

João tinha onze anos e morava no subúrbio, onde todas as casas são iguais, mas as pessoas são diferentes. Se as paredes têm a mesma cor de tijolo sem pintura, as pessoas são diversificadas. Cores e histórias diferentes.

Maria tinha nove anos. Morava na parte alta da cidade, onde todas as pessoas são chatamente iguais. Frequentava boas escolas e aos finais de semana ia para a casa de sua avó, que ficava no subúrbio.

Devido à proximidade entre a casa de João e da avó de Maria, quis o destino que os dois se encontrassem.

O amor foi natural e instantâneo. Não esse amor romântico, marcado por miséria e dor. Mas um amor sublime, um amor de criança.

Todos os finais de semana se encontravam para brincar no quintal da casa de João. Montavam uma cabana de sofás velhos com cobertores não usados e estava feita a casa dos dois. Como eram felizes.

As bonecas de Maria eram as suas filhas e João, com as ferramentas do seu pai, era aquele que chegava cansado do trabalho.

Maria, atenciosa, preparava a comida do menino com suas panelas miúdas e delicadas, enquanto João dava atenção às suas filhas.

Repetindo essa rotina todos os finais de semana, os dois brincavam. Até que numa manhã de sábado chuvoso, a menina apareceu. Mal começaram a brincar e os pais dela foram buscá-la. De tão apressada que saiu, só levou as bonecas. Um lenço que servira de fralda para as pequenas acabou por ficar no meio do caminho.

João, pacientemente, pegou a lembrança, guardou no bolso e correu para desenhar um Sol no quintal de casa. Pouco demorou até aparecer um arco-íris no céu, sinalizando o final da chuva. E o menino continuou aguardando o seu par, mas sem sucesso.

Aquela fora uma manhã contraditoriamente muito triste.

Passaram-se duas, três, quatro semanas e nada de Maria. Até que João criou coragem e perguntou à sua mãe pela menina. Foi então que ela disse que a menina não viria mais. O motivo de suas constantes visitas, sua avó, havia falecido.

Como poderia a sua companheira dos finais de semana ter sumido sem avisá-lo? Ficou na sua lembrança aquele último olhar. Um olhar apressado, como quem quisesse dizer algo. João só tinha o pequeno lenço com flores azuis de lembrança da sua querida.

Passaram-se os anos e a menina, que já teria virado moça, não apareceu.

O rapaz ainda lembrava da sua pequena. Será que ela ainda pensa em mim?

Aos 26 anos João recém arrumara um emprego de garçom em um barzinho movimentado lá pelas bandas do centro da cidade.

Numa sexta-feira de tempo pouco amistoso, ele tomou a sua condução para o trabalho e chegou atrasado. Sexta-feira é dia de movimento e naquela ocasião havia uma comemoração dos estudantes de Medicina que haviam acabado de concluir a residência.

Bronca do patrão!

Bar cheio, menos um garçom seria prejuízo na certa.

Atrapalhado por seu primeiro dia de grande movimento no bar, João não dava conta de todas as mesas. Atrasava os pedidos e por vezes até esquecia.

Bronca do patrão!

Caminhando para servir a mesa dos estudantes, o rapaz avista uma menina. Avista a sua Maria. Morram de inveja os anos, mas ela continuava intacta. Linda e intacta. Ainda era a sua menina. Apenas tinha ganhado idade e experiência.

Ele ficou atônito, chocado. Hesitou em servir a mesa e virou para voltar ao balcão ou sair correndo. Desajeitado, esbarra e derruba tudo. Todos olham, inclusive ela.

Bronca do patrão!

Nada mais disso importava. Ele havia encontrado o seu grande amor. Mas o que falaria para ela?

Não estudei, não arrumei um bom emprego, não casei, não tive filhos… sou um garçom.

Não, não e não.

Com muita força de vontade e virando o rosto para não ser conhecido, João serve a mesa de Maria. Eis que a menina lhe pede a conta.

Ele congela.

Ao entregar a conta e receber o dinheiro do pagamento, Maria saca da mão uma nota e lhe dá. Gorjeta. João não aceita de imediato, mas Maria fala que o garçom lhe servia muito bem, se levanta e vai embora.

Um misto de felicidade e tristeza tomam conta de João. Felicidade pela menina não reconhecê-lo, tristeza por ela não reconhecê-lo.

Naquela noite João fora mandado embora.

A volta para casa não poderia ser pior. A chuva castigava o seu bairro.

Ao chegar em casa, a primeira coisa que o menino fez, foi correr para a sua gaveta e pegar o lenço de Maria. Que saudade!

Sentado à mesa e contando as gorjetas que recebera, João se depara com a nota de Maria.

Nota rabiscada com o nome da menina e o seu telefone.

Aquela foi uma noite contraditoriamente muito feliz!

Inefável

por André

Parecia estar num túnel e a escuridão só era interrompida por alguns pontos de luz que passavam pela janela. Uma campainha distante parecia anunciar a próxima estação do metrô: Cinelândia.

Biblioteca Nacional e Teatro Municipal

Desci do vagão cheio de si e tomei a escadaria em direção à Rio Branco. Marcara em frente ao Museu Nacional de Belas Artes um encontro.

Ao sair da estação, aproveitei um descuido dos carros, que deixaram a pista vazia, e atravessei a larga avenida. Era só andar mais alguns metros e o encontro aconteceria.

A praça e as ruas estavam movimentadas. Pareciam não entender que o sábado foi feito para o descanso. Como típica tarde do Rio de Janeiro, estava quente. Suava pelo calor e pela ansiedade.

Chegando ao Museu, não notei a sua presença. Certamente estava atrasada. Certamente seria compensado pelo resultado do atraso.

Passados alguns minutos, ela desponta de uma esquina ensolarada. O Sol, egoísta, tentou escondê-la da minha visão e ofuscou-a por alguns segundos. Foi só colocar a mão na frente dos olhos e perceber que o astro havia se tornado uma espécie de passarela, ele iluminava a sua estrada e dava um brilho especial aos seus cabelos.

O museu estava com uma exposição sobre esculturas egípcias e aquele seria o único dia. Trocamos um acanhado beijo e entramos. Não nos falamos. Parecia haver uma trava natural de primeiro encontro.

Caminhamos em direção à entrada e passamos a observar as peças em exposição. Não trocamos uma palavra.

Por vezes eu retardava o andar só para observá-la. Como era linda. Cabelos compridos e um andar tímido. Não trocamos uma palavra.

Saímos da exposição e passamos a andar pelas ruas do centro da cidade. A Biblioteca Nacional, invejosa resmungava por nem todos os seus livros poderem explicar aquela beleza.

I-ne-fá-vel!

As ruas, antes agitadas, pareciam ter parado. Atravessar as pistas já não era tarefa tão difícil. A cidade parou para vê-la e eu também.

Bobo e atônito observava o seu jeito de olhar os grandes prédios. Por vezes me aproximava um pouco e encostava minha mão na sua. Parecia o menino e a primeira namorada. Não trocamos uma palavra.

O Teatro Municipal, palco de grandes peças, observava entusiasmado aquela bailarina que parecia voar no tablado da Cinelândia. Não trocamos uma palavra.

Não parecia haver motivo para que não nos falássemos. Não falava porque não conseguia. Não falava porque não podia. Parecia haver uma barreira invisível que impedia a nossa comunicação. As palavras de amor eram faladas com os olhos. Sabíamos do sentimento um do outro, mas não trocamos uma palavra.

Tomamos um táxi em direção à Lapa e decidimos parar na Pizzaria Guanabara. Agora o calor não castigava somente a mim. As divindades também sofrem com ele. Ingênuo não tirou a sua beleza. Apenas realçou. Não trocamos uma palavra.

O relógio já marcava quase dezoito horas e então resolvemos ir para a estação final do nosso encontro. Indo para a Cinelândia, local do ponto de partida, o sino da Catedral Metropolitana anunciava a despedida. Um beijo e um abraço apertado foram suficientes. Não trocamos uma palavra.

Desci a escadaria do metrô e novamente a escuridão tomou conta dos meus olhos. Abro-os e ouço:

Acorda! Acorda para a vida. Está sonhando? Hoje é segunda-feira. Hora de trabalhar.

Crucifica-o

por André

Crucifica-o! Alguém precisava ser sacrificado. Que não sejamos nós.

Crucifica-o! Se és verdadeiramente o que dizemos ser, por que não desces da cruz?

Crucifica-o! A semente precisa morrer pra germinar.

Crucifica-o! Se és verdadeiramente o que dizemos ser, ressuscitarás. Ao segundo, ao terceiro, ao quinto.

Crucifica-o! Se és verdadeiramente o que dizemos ser, os dias ou os anos não terão importância.

Futuro do Pretérito

por André

– Você é muito cética. Precisa desenhar, pintar, imaginar a sua vida. Do que adianta ganhar uma tela branca, se não quer rabiscá-la?

Ela, misturando risadas de descrença e palavras, retrucava beijando-o:

– Você é muito bobo, precisa parar de ler essas histórias.

– Bobo e apaixonado. O homem é da grandeza do seu sonho, se me permite parafrasear Pessoa.

Se conheciam há tanto tempo que o tempo nem mais importava. Os dez anos juntos tinham o mesmo vigor que três meses de namoro. Podiam citar a vida um do outro de trás para frente.

Monotonia?

Cada vez que se encontravam era como um evento único. Parecia a saudade acumulada de anos.

Se existisse algum livro com exemplos de amor e felicidade, certamente na definição apareceria a foto dos dois, juntos.

Se me permite dar o meu pitaco, ele nem era grande coisa. Mas ela via no seu homem aquilo que sempre procurou. Alguém que pudesse fazê-la feliz. Se ela pensasse em outro homem, certamente era para compará-lo ao seu e chegar à conclusão da felicidade de sua escolha.

Eu disse escolha? Não. A escolha permite troca e no amor não existe troca.

Pode a mãe amar o filho no próprio ventre e ao descobrir que o rebento tem algum problema substituí-lo?

Pode a mãe substituir o amor pelo filho que morre por outro amor?

Se você acha que sim, certamente desconhece o amor.

Ele era o melhor para ela porque era ele. Porque o amava.

E quanto a ela? Seria injusto eu, sabedor de todas as coisas, falar dela.
Nos termos infantis dele, porém engraçados, ela era a arte final do seu quadrinho. Ele se sentia o super-herói da história e via nela a mocinha a quem proteger.

Ingênuo, achava que ele a protegia do mundo. Pobre criatura indefesa. Não vê que a sua força vem dela.

Ela era o melhor para ele porque era ela. Porque a amava.

Não havia por que ter medo. Não existiam vilões nas suas história. Sim, história no singular, porque a deles era singular, única.

O único vilão na história de qualquer homem é o seu próprio destino.
Quis ele que ambos se perdessem. Sem briga e nem choro, somente com dor. E quando o amor dói, é porque valeu a pena.

Mas ainda que essa força supostamente insuperável tentasse separá-los, ambos sabiam que poderiam vencê-la e isso dependeria somente deles.

O homem é do tamanho do seu sonho.

O quadro pintado e emoldurado não pode ser apagado.

A arte final do desenho não pode se converter em rascunho novamente.

O destino só tem grandeza perante as escolhas, perante as horas, os dias.

O destino não manda nos anos. O destino não manda no tempo, o destino não manda no amor…

Pra ficarem juntos novamente deveria ser questão de tempo. Talvez meses, talvez anos, talvez décadas.

Certamente os anos passariam como séculos, mas o encontro será inevitável.

O destino não mais existirá.
Hoje faço com meu braço o meu viver…

Meu rico olhar mendigo…

Recentemente li da crônica esportiva uma batida máxima do futebol:

“O medo de perder tira a vontade de ganhar”

Essa frase me perseguiu durante semanas. O que isso, afinal, tinha a ver comigo? Tudo!
Como disse em outros posts, eu era um menino tímido. Imagino até que isso tenha se perdido com o tempo. Aprendi a disfarçá-la com uma risonha cara de pau. Mas a verdade é que a minha timidez – o medo de perder – me privou de ganhar muitas coisas.

A que me recordo para escrever, foi quando tinha lá pros meus doze ou treze anos. Naquela época eu ainda vivia protegido pela redoma dos meus medos. Lembro-me que era apaixonado por uma menina que estudava na turma ao lado. Após o recreio as turmas se enfileiravam na quadra da escola para seguir cada uma para suas respectivas salas.

Ah… aquele era o meu momento de contemplação. Eu ia para o colégio apenas para vê-la na fila do intervalo.

Ela era linda.

Tinha um rosto angelical, delineado pelo corte de seus cabelos louros. Mas aquele não era um louro qualquer. Era um louro cor de aurora que cegava meus olhos e enrubescia a minha face, os outros cabelos eram simplesmente amarelos perto do dela.

Quando se é tímido, é preferível que a sua amada não saiba do seu amor. Ainda que isso te torture eternamente, amar escondido é melhor do que não poder amar.

Com o passar dos dias, comecei a perceber que ela olhava insistentemente para a minha fila. Procurava, bobo, motivos e direções para os olhares. Tinha amigos muito mais bonitos e certamente eu não era o agraciado da vez. Passei semanas procurando motivos, até que as evidencias me seguraram pelo braço e me chacoalharam.

– Sim! Ela estava olhando pra mim!

Quando se é bobo, tímido e, sobretudo, se tem treze anos não se sabe o que fazer.

Quando ela era um amor platônico, o meu sonho era que esse amor um dia fosse correspondido. Só que aquele amor saiu do mundo das ideias e tomou contornos de realidade. Uma realidade palpável e, por isso, assustadora. O amor que seria a minha redenção, acabou por tornar-se o motivo da minha condenação. Por não saber o que fazer, um simples olhar dela fazia com que eu desmoronasse na minha timidez.

Até que os dias foram se passando, os olhares foram cada vez mais intensos e com a proximidade do fim do ano, chegava ao fim o meu amor platônico correspondido. A minha vergonha dava saltos de alegria, enquanto o meu coração atrofiava.

É bem provável que essa história ainda aconteça com meninos de treze anos e até mesmo com caras de vinte e três.

Só que agora o meu problema não é mais a timidez ou querer alguma coisa e nunca tê-la, mas, sim, o medo de perdê-la.


Bolero Blues
Chico Buarque

Quando eu ainda estava moço
Algum pressentimento
Me trazia volta e meia
Por aqui
Talvez à espera da garota
Que naquele tempo
Andava longe,muito longe
De existir
Tantos tristes fados eu compus
Quanto choro em vão, bolero blues
Eis que do nada ela aparece
Com o vestido ao vento
Já tão desejada
Que não cabe em si
Neste crucial momento
Neste cruzamento
Se ela olhar para trás
É bem capaz de num lamento
Acudir ao meu olhar mendigo
Mas aquela ingrata corre
E a Barão da Torre e a Vinícius de Moraes
São de repente estranhas ruas
Sem o seu vestido ficam nuas
E ao vento eu digo
-tarde demais
Quando ela já não mais garota
Der a meia-volta
Claro que não vou estar mais nem aí

Ainda sobre os homens….

Quando completei quinze anos ouvi em alto e bom som:

– Espero que voce tenha aproveitado, porque depois dos quinze passa rápido.

Foi só eu acordar no dia seguinte para descobrir que já tinha a maior idade e aos poucos fui descobrindo que só se e feliz de verdade até os dezoito anos.

“A vida são deveres que nós
trouxemos pra fazer em casa.
Quando se vê já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê, passaram-se 50 anos![…]”

Digo isso porque, se fomos compensados com uma infância sem privações, é na idade adulta que as preocupações aparecem.

Como não fomos treinados, parecem ter todo o peso do mundo. Seremos o Atlas da mitologia contemporânea.

Ainda que a mulher tenha que enfrentar todos esses problemas, a ela não cabe o poder da decisão. Elas têm o dom de gerar, nós o de dar fim. E pra exemplificar, é só lembrar de uma simples compra de um vestido. Se o companheiro não fizer a escolha – a pedido da mulher, claro – e não der um fim na compra, não serão as horas e tampouco o poder de decisão da mulher que se encarregarão.

Estude, trabalhe, case. Seja um bom funcionário, um bom marido, um bom pai. Ainda que a sua vontade seja de voltar a ser aquela criança dos dozes anos, aquela que só brincava.

A saudosa criança que talvez ainda viva na sexagenária alma do meu pai sempre me fala:

– Na próxima encarnação, quero voltar filho.

Portanto, mulheres, não reclamem das nossas atitudes infantis. É só o menino querendo brincar…

Sobre os homens…

Já que se foi falado sobre as mulheres em textos anteriores, nada mais justo do que falar sobre os homens como compensação. Dividirei esse post em outros e por ora, falerei sobre a infância.

Antes de tudo, devo salientar que nós homens não nascemos. Entramos em campo. Não se pode precisar a origem dessa nossa paixão pelo futebol, mas sabe-se que ela começa na barriga – que, coincidentemente, tem o formato semelhante ao de uma bola.
Mal começa a se formar o feto e o pai já conjectura o nosso time.

E os presentes? Passam pela roupinha com o escudo do time do nosso [?] coração até a bola de futebol, que desde pequenos somos doutrinados a chutar.

Talvez isso tudo faça parte de um enredo que somos obrigados a seguir.

Infeliz é você, irmã, que cumpre todas as tarefas domésticas, enquanto nos estamos sendo preparados para nos tornarmos homens. Ainda que esse caminho não seja tão penoso quanto seu. Mas a colheita, que é obrigatória para ambos, parece-nos mais ingrata.

Interessante é reparar, também, como nós homens sabemos aproveitar a infância. Sim, sabemos porque vivemos a melhor idade com toda intensidade possível. Alguns de nós até esquecem que essa época tem prazo de duração.

Nas mulheres batem os doze anos e elas logo pensam em namorar.

Nós?

Nos agrada muito mais, nessa idade, a companhia de bolas, vídeo-games, amigos, pipas, piques…

Tapados ou não – culpem os hormônios de vocês -, só depois de um tempo é que despertamos a nossa sexualidade. E é quando toda brincadeira implica em namorar.

Aos 15 nós não sabemos por que as meninas da nossa idade só gostam dos caras de 18. Aos 18 as interessantes serão as de vinte. Bobos somos joguete do amor e do descaso das mulheres mais velhas.

Escrevendo que se vive…

Não planejo nada, escrevo por fruição.
Talvez você se sinta assim, mas sabe aquela sensação de querer fazer alguma coisa, estar angustiado e não conseguir? Senti-a e ainda sinto com freqüência. Há semanas não tenho uma boa ideia para escrever um bom texto. E o pior de tudo é que escrevo histórias verdadeiras, e por isso tenho a nítida impressão de que as coisas só existem ou passam a existir depois que as escrevo.
Já pensei em escrever sobre minhas alegrias, mas seria tão clichê quanto escrever sobre as minhas tristezas que, proporcionalmente, são maiores do que as primeiras.
Já pensei em escrever sobre meus amores platônicos inatingíveis e inalcançáveis, mas ainda assim seria escrever sobre a tristeza e certamente isso me daria um trabalho hercúleo.
Pensei até em escrever sobre um sábado com os amigos, mas sou egoísta e isso eu não compartilho com ninguém.
Acho que escrever está se tornando pouco pra mim e eu não devo me conformar apenas com isso.
Preciso viver com a mesma intensidade que escrevo.

Aconchego

Você vai me velar, chorar, vai me cobrir
e me ninar…

Essa dualidade com que as mulheres exercem algumas coisas na vida às vezes chega a ser fascinante. Não estou me metendo agora a puxar saco das mulheres, não é isso. Apenas acho interessante a relação que nós homens temos com o aconchego feminino.

Ainda acho que no quesito companheirismo, cumplicidade, coleguismo nós somos imbatíveis. Não existe amizade feminina que se equipare à amizade masculina.

Dois amigos são eternamente amigos. Duas amigas são possíveis futuras rivais.

Mas quando o assunto é aconchego não há homem que seja capaz dá-lo tão bem quanto uma mulher. É claro que vocês também precisam disso, mas eu sou homem, escrevo coisas de homem e, sobretudo, na ótica do homem.

Quando estamos doentes não há hospital tão sofisticado quanto o colo de nossa mãe. Não há outro lugar no mundo em que gostaríamos de estar. Infelizmente as obrigações e as imposições da vida acabam por nos afastar desse regaço confortador. E se me permite abranger um pouco da minha loucura e até fazer uma confissão, volta e meia, quando estou doente, me pego pedindo para que minha mãe venha dormir comigo.

Fora o colo materno, existe o colo da mulher enquanto companheira. Não como amiga, mas como alguém com que você divide a sua vida. Colo da mulher, colo de mulher… não é colo pra mulher. A relação é diferente, as pessoas são diferentes, mas aconchego é o mesmo, os colos são análogos.

Me nina, menina, me nina, menina, me nina, menina…

Sobre as mulheres

Nos meus eternos questionamentos cheguei à seguinte conclusão:

Há três tipos de mulher: as santas, as putas e as que transitam entre a clareza da primeira e a obscuridade da segunda.

Não, mulher, não pare de ler achando que é pretensão minha tipificar você nesses três tipos. No final, me entenderá e talvez até me dê razão.

Pra exemplificar esses três tipos, eis que recorro a três célebres personagens femininas da Literatura: Madalena, Dona Flor e Capitu.

Madalena, de São Bernardo, é de uma raridade ímpar. Exemplo de mulher quase perfeita – até porque a perfeição é reservada, única e exclusivamente, para as nossas mães. A personagem de Graciliano é culta, altruísta, fiel, trabalhadora, enfim. Reúne uma gama de qualidades que, para nós homens, são infindáveis defeitos. Não somos merecedores do amor e nem capazes de amar essas mulheres. E isso faz com que elas suicidem o próprio sentimento.

Pro leitor desavisado, Dona Flor não tinha nada de puta. Usei-a como exemplo do segundo tipo para classificar a mulher que, se fosse possível, nos trairia até com os mortos. Somos meros joguetes dos seus devaneios. O pior de tudo isso é que gostamos. O saudoso poeta Mário Quintana escreveu que o mais triste de um passarinho engaiolado é que ele se sente bem. Somos engaiolados por elas e cruel e aparentemente nos sentimos bem. Falsa ilusão. Como disse o queridinho de vocês, Chico Buarque: Por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz. E atrás dessa mulher, mil homens sempre tão gentis.

Já o terceiro modo é o que me parece mais comum. Mesclam elementos do primeiro e do segundo tipo. Capitu talvez seja a que melhor retrate essa mistura entre Madalena e Dona Flor, até que se prove o contrário. Não se pode afirmar sobre o seu caráter ou sobre suas atitudes até que flagremos um trejeito de Madalena ou Dona Flor. No entanto, isso não quer dizer que sejam confiáveis.

Como você pode ver, mulher, somos reféns. Reféns de nós mesmos e de nossa eterna dúvida. Essa eterna dúvida que ainda não conseguimos responder.

E se me permitem ir mais além, talvez estivesse enganado. Essa Quimera tem muito mais do que três cabeças. Chamá-las de vilãs ou heroínas seria puro reducionismo romântico. Quem sabe se vocês, assim como nós, só façam agir de acordo com cada situação. Reféns daquilo que nós julgamos achar que conseguimos esconder… os próprios sentimentos.

O Vermelho e o Negro

O apito do trem anunciava a morte. O trem passou pela estação da vida daquelas pessoas, em sua maioria negros, e tingiu de vermelho sangue a paixão daqueles torcedores.

O trem que levou a vida, trouxe lágrimas. O Maracanã não era nada se comparado ao choro que acompanhava o som da corneta do músico da Charanga.

O apito do arrebatamento tinha o mesmo som triste da música do instrumento e das palavras do trovador.

Flamengo até [depois de] morrer…

*Meu pai conta a história de que ao descer na antiga estação Derby, atual Maracanã, torcedores que andavam pela linha foram atropelados por um trem. Entre eles, um menino de aproximadamente 10 anos. Morto e enrolado numa bandeira do Flamengo. Antes do início do jogo o locutor do estádio pediu um minuto de silêncio em homenagem às vítimas da tragédia. Então ergueu-se o corneteiro da Charanga do Jaime e entoou uma marcha fúnebre. Corria o ano de 1968.

Uma colher de chá

Já disse o ditado:

A oportunidade e o cavalo encilhado só passam na nossa frente uma vez.

Quando pequeno não era o moleque mais arteiro do mundo e tampouco o mais comportado: era criança e, posto que criança, fazia coisas de criança.

Isso me rendeu castigos por boa parte da infância.

Um dia sem sair de casa, uma semana sem brincar, um bimestre sem video game. Certo é que não escapava sequer por 7 dias sem uma punição. Talvez se contabilizasse a quantidade de dias que fiquei de castigo, ultrapassaria a quantidade de que tenho de vida.

No entanto, contrariando o ditado gaúcho, pra tudo nessa vida – ou quase tudo – existe uma concessão, uma segunda chance.

Lembro da minha primeira. Veio amarga, sob roupagem diferente.

Meu pai e disse:

– Dessa vez vou te dar uma colher de chá.

Por não saber do que se tratava, neguei. Mas sem saber que a segunda chance, de ruim não tinha nada. Como disse Drummond, o verdadeiro sentido das palavras não está no dicionário; está na vida, no uso que delas fazemos

E é assim que a vida faz. Nos oferece colheres de chá todos os dias. Talvez, não da forma como queremos, não da forma de palavra de dicionário, mas em cada situação que podemos fazer uso no cotidiano.

Quis custodiet ipsos custodes?

A lágrima que cai do rosto da criança indefesa é a mesma lágrima que cai do rosto do homem que chora calado.

O medo da criança que teme o escuro é o mesmo medo do homem que teme sozinho.

A mãe afaga a criança que chora e o pai protege a criança que teme.

O homem afaga a mãe que chora enquanto protege o pai que teme.

Só me diga uma coisa:

“Quem guardará o guardião?”

Bons Tempos

Reuniam-se sempre aos Domingos. Aos meus olhos, aquilo era de uma grandiosidade tamanha. Não faltava nada e nem ninguém. Brincadeiras, bolo, pastel, almoço, doces. Avós, pais, tios, primos, sobrinhos, amigos…

Se eu não conseguia expressar tudo o que sentia naqueles momentos por meio de palavras e nem de gestos, me bastava sorrir. Sorria, sorria com os olhos e isso era o suficiente pra saberem. Meu coração doía de tanta felicidade.

Mas os bons tempos acabam, quando a verdade aparece. A felicidade, por vezes, é inimiga da verdade.

Não se reúnem mais. Hoje, aos meus olhos, aquilo era de uma falsidade tamanha. Faltava a verdade, faltavam os verdadeiros sentimentos. Intrigas, fofocas, mentiras, ostentação. Já não há mais avós, não vejo meus tios, nem primos. Me restaram os pais e os amigos. Se não consigo, hoje, expressar tudo o que sinto por meio de palavras, meus olhos novamente serão meu espelho. Meu espelho de dentro.

Sinto saudade do que não vivi e de quem não conheci. E saudade também não tem tradução. Hoje tenho o coração doendo de tanta saudade.

No mesmo lugar

Não quero dizer
que não vale a pena arriscar.
Só não quero mais insistir
em ser insistente.

Não quero perder
tudo que lutei pra ganhar.
Apostando no teu olhar novamente.

E esperar
por quem não quer vir pra mim.
Levantar e cair para sempre.
Rodando
e permanecendo no mesmo lugar.

***

Gravei essa música com uns amigos em casa. Entre eles, Wellington Rodrigues e Octávio Augusto.
Sei que ninguém vai pedir, mas caso alguém queira, só deixar o e-mail. 🙂

Das Hierodulas

Os letreiros vermelhos de neon que piscavam desordenadamente podiam ser convidativos, mas me lembraram os escritos narrados por Dante na sua Divina Comédia.

“Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”

Estava lá, não porque queria, mas porque me faltava coragem. Entrar já não era mais mera opção, nem força do acaso. Era obra do embalo. A decisão em conjunto tomada, por mim calada, por mim consentida, por mim omitida.
Dentro, eu não teria mais escolha.

No Inferno, a música que guiava a minha passagem não vinha da lira de Orfeu e tampouco acalmava o Cérbero. Apenas o instigava.
Só vivendo o inferno para se saber que o mesmo não é marcado por terríveis castigos ou por eternas dores. Se para os cristãos o Inferno é a ausência de Deus, meu inferno era a ausência de mim mesmo.

Quem havia me roubado de mim?

Se a imagem mítica do inferno é representada pelo horror, meu inferno era repleto de uma beleza suja e prazerosa, uma beleza epicúrea. Os demônios não castigavam, mas cantavam odes ao prazer. Convidativos vendiam um amor barato e descartável.
Um amor vencido.
Eu, taciturno, novamente calei, consenti, omiti.

Embriagado e sonolento por uma coragem artificial, pelo canto das sereias do mar de solidão.
Eu vivi a eternidade e vos garanto: Não valeu a pena.

Tal como Orfeu, só me resta agora tomar o caminho de volta. Sem ter uma Eurídice, sem olhar para trás.

As três feridas narcísicas

Três grandes acontecimentos marcaram o ego humano de tal forma que foram considerados as três feridas narcísicas da humanidade.

O primeiro grande golpe veio com Copérnico, quando o mesmo afirmou não sermos o centro do Universo. Éramos meros coadjuvantes que brincavam no carrossel do Sol.

Se não estávamos no papel principal da peça universal, nos restava ainda gozar da condição de filhos de Deus. Mas Darwin, ao descobrir o evolucionismo, nos legou a condição de mero produto do acaso. Não somos seres especialmente criados, mas apenas resultado da evolução natural dos seres.

A despeito disso tudo, quisemos reivindicar, como última esperança, a racionalidade exclusiva da nossa espécie. E então, Freud nos deu o derradeiro golpe que nos faz sangrar até hoje. Não somos sequer senhores de nós mesmos. A consciência é a menor parcela de nossa vida psíquica.

Tal qual o homem, a nossa vida – de modo individual – a cada momento sofre feridas que abalam a nossa estrutura e nos fazem repensar o que somos e o que queremos a cada instante.

Lembro-me que a primeira ferida narcísica que sofri foi aos 7 anos. Quando pequeno, pensava ser o meu pai o homem mais alto do mundo. Por ele e por meio de sua altura aspirava às coisas do alto. Foi quando conheci outro maior do que ele…

Restava ainda a condição de super-herói inerente a todo pai. Foi quando aos 13, vi meu pai chorar pela primeira vez. O homem inatingível também sentia medo, também sentida dor, também chorava. O super-herói tinha lá as suas fraquezas.

Depois de feito homem, nada mais poderia me abalar, pensei. Foi aí que me bateu à porta a morte. Nada e nem nínguém é eterno. Mesmo as pessoas mais queridas têm prazo definido de estada na Terra. Eis a ferida que sangra até hoje. Eis a ferida que nunca vai cicatrizar.

E você? Quais as suas feridas?

Amar, verbo transitivo

O cogumelo de fumaça, para alguns críticos, marca o fim de uma era de ideologias bem definidas e abre as cortinas para o início de um tempo sem verdades absolutas: a Pós-modernidade.

Um sociólogo polonês chamado Zygmunt Bauman define por líquidas as relações humanas da atualidade. Líquidas porque efêmeras. Ao tentarmos tocá-las se esvaem, escorrem como líquido nas mãos. O próprio amor, sentimento intocável e infalível da moral cristã, já tem seu prazo de validade.

Dura enquanto não dá defeito.

Dura enquanto durar a nossa paciência.

Dura enquanto não encontramos outro melhor.

Trocamos de amor, como trocamos de celular. E é óbvio que para alguns, a frequência com que se troca de amor é bem maior.

O próprio autor é exemplo vivo de liquidez e efemeridade nas relações. Enquanto digita o texto da Quinta-Feira Santa no celular, se apaixona por cada mulher bonita que entra no metrô, um amor a cada estação. Amores que duram por duas ou três estações. Eternos amores de um dia só.

– Que loira linda! [próxima estação: Maracanã]

Acabou o amor.

Festina Lente

Era pontual. Às 17h começou a se arrumar para um encontro que só aconteceria às 19h30. Nada podia dar errado. Passou sua calça e a blusa sistematicamente, tomou banho, fez a barba e às 18h30 estava pronto para sair de casa. O bar ficava a poucas quadras de onde morava. Também era indeciso e levou o tempo da descida do 7° andar até a porta do edifício para escolher como iria.

Táxi, pensou.

 Lhe pouparia lenço. Já bastava o suor da insegurança e da ansiedade.

Também era tímido. Ao longo do caminho rememorava frases prontas que lia em livros ou ouvia em filmes – a timidez, como toda maldição, provê bênçãos. Tinha uma inteligência e uma memória louvável. Só ele sabia o quanto havia sido difícil conseguir aquele encontro. Quase naufragou na sua própria timidez.

Às 19h00 chegou ao bar e a sua primeira atitude foi olhar o relógio. A pontualidade, apesar de uma qualidade, reside num grande defeito: a ansiedade.

Às 19h15 já imaginou um possível atraso e nas possíveis desculpas que ele mesmo dava para si.

Um drink, por favor.

A bebida é como coragem líquida. Só ela é capaz de tornar o tímido num descontraído e sedutor, tal qual os personagens dos romances que lia e o oposto do Dom Quixote que era.

19h25 e a hora teima em demorar a passar.

19h30

Até 19h35 não pode ser considerado atraso.

Cada minuto sozinho é eterno.

19h40

Deve ter perdido o ônibus do horário.

19h50

O ônibus quebrou.

20h00

Todos os ônibus da cidade quebraram.

20h30

Não vem mais.

O que ele havia feito de errado?

Hamlet observara a Horácio que existiam mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia. Nada mais importava, não queria saber motivos ou causas. Toda a sua timidez, sua pontualidade e sua insegurança naufragavam agora no fundo de um drink.

Mais um, por favor. Hoje eu não tenho hora pra chegar.